Covid-19 e seus efeitos no relacionamento a dois

A grande maioria de nós procura um parceiro(a) para construir a vida juntos. Porém, relacionamentos à dois não são nada fáceis. No começo, tudo é perfeito. Os defeitos parecem não existir e os problemas passam despercebidos. Conforme o relacionamento avança, também crescem as dificuldades. Aquele hábito do outro que nos incomodava de leve passa a ser insuportável. As tarefas que necessitamos fazer para que a vida continue andando se tornam intermináveis. A grana nunca parece ser suficiente. O desejo e a paixão são substituídos por rotina e domesticidade.
Tudo isso é muito normal em relacionamentos, mas o nível de estresse diário e o acesso a atividades que promovem o bem-estar tem um efeito significante em como casais conseguem lidar com as dificuldades do dia-a-dia na vida a dois. É fato que o estresse tem um efeito altamente negativo em nossas vidas, aumentando nossa susceptibilidade não só a problemas de saúde mental, mas também a doenças autoimunes, cardiovasculares, entre outras1. Também sabemos que eventos catastróficos impactam negativamente tanto os relacionamentos humanos quanto nossa saúde mental 2. Assim sendo, é de se esperar que um evento sem precedentes na nossa atual geração como a pandemia mundial causada pela Covid-19 aumente exponencialmente nosso nível de estresse diário, e que isso venha a afetar todas as áreas de nossas vidas, incluindo relacionamentos a dois. O medo, a incerteza, o isolamento social, a quarentena em casal ou em família. Consequentemente, vemos muitos casais enfrentando crise no relacionamento.
Estudos sugerem que indivíduos com alta qualidade de relacionamento a dois apresentam melhor qualidade de vida, bem-estar e qualidade do sono, menor nível de estresse e menos sintomas de ansiedade e depressão 2,3. Além disso, estudos também indicam que é mais prejudicial estar em um relacionamento de baixa qualidade do que estar sozinho, já que pessoas solteiras também apresentam riscos diminuídos em comparação a pessoas nas quais o nível de satisfação do relacionamento seja baixo2.
Ou seja, quanto melhor a qualidade do relacionamento, mais fácil lidar com os problemas e nossa saúde mental. Porém, uma vez que o aumento do estresse tende a diminuir nosso nível de satisfação com o outro, é importante entender como isso pode acontecer.
Diferença entre reagir e responder
O estresse afeta a qualidade dos relacionamentos de muitas formas, principalmente no tocante ao aumento dos conflitos entre o casal e à forma como passamos a lidar com eles, assim como a problemas de comunicação resultantes do aumento na nossa reatividade emocional.
Quando nos vemos em situações estressantes, nosso cérebro tende a entrar em piloto automático, o que inglês chamamos de resposta “flight, flight or freeze”. Isso quer dizer que nossa capacidade de refletir, nos colocar no papel do outro, compreender a situação como um todo e sentir empatia fica temporariamente diminuída. Assim sendo, nos tornamos mais impulsivos e irracionais, o que nos leva a reagir instantaneamente ao invés de responder de uma forma adulta e ponderada. Naturalmente, isso tem um impacto grande não somente em como nos comunicamos com nosso parceiro (a), mas também no nível de importância que atribuímos ao evento. Por exemplo, aquela mania chata do outro em não apagar a luz ou não colocar a roupa suja no cesto viram um grande problema, que muitas vezes interpretamos como falta de cuidado ou atenção do outro. Consequentemente, passamos a ter menos interações positivas e mais conflitos com nosso parceiro(a) e, porque estamos brigando mais, gastamos menos tempo de qualidade juntos, diminuindo ainda mais nossa satisfação com o outro e nosso nível de intimidade. Torna-se um ciclo vicioso. Este ciclo geralmente é invisível para o casal, o qual se torna preso e perdido nele.
Assim sendo, não é de nos surpreender que a atual pandemia mundial esteja nos impactando de uma forma significativa, principalmente em nossos relacionamentos a dois. Lockdown, perda de emprego ou diminuição na renda, dificuldade em pagar as contas, homeschooling, falta de oportunidade de socializar com amigos, viajar ou visitar parentes, incertezas em relação ao futuro e em relação a nossa saúde ou à saúde de entes queridos, entre tantas outras coisas, naturalmente aumenta o nosso nível de estresse de uma forma gritante e, quer estejamos cientes ou não, tendemos a nos tornar mais emocionalmente reativos ou a estar à flor da pele.
Melhorar a forma como lidamos e gerenciamos nossos níveis de estresse pode nos ajudar não só em relação a nossa saúde mental e física, mas também a prevenir problemas de relacionamento e até melhorar nossa satisfação com o outro. Somente aprender a se comunicar melhor ou como gerenciar os problemas do dia-a-dia mais efetivamente não parece ser suficiente para fortalecer a ligação do casal. É necessário que cada um de nós esteja ciente de como as dificuldades nos afetam emocionalmente e que nos tornemos responsáveis pelo gerenciamento de tais efeitos e de nossa saúde mental pessoal. Este trabalho individual requer auto-cuidado, vontade de melhorar como pessoa, e uma atitude de compaixão e humildade.
Referências:
- Mate, G. (2003). When the body says no: The cost of hidden stress. Scribe Publications.
- Pieh, C., O’Rourke, T., Budimir, S., & Pfobst, T. (2020). Relationship quality and mental health during COVID-19 lockdown. PLoS ONE 15(9): e0238906
- Bodenmann, G., Ledermann, T. & Bradubury, T. (2007). Stress, sex, and satisfaction in marriage. Personal Relationships, 14, 551-569.
- Perel, E. (2007). Mating in Captivity. Sex, lies, and domestic bliss.
Angelica Bilibio
Psicóloga clínica e terapeuta de casais.
Contribuição de Claudia Ferreira, psicóloga provisória.
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